NOTA PÚBLICA DO MOVIMENTO INTERFÓRUNS DE EDUCAÇÃO INFANTIL DO BRASIL (MIEIB) SOBRE O PROJETO DE LEI N.º 3179/12 - REGULAMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO DOMICILIAR


Brasília, 08 de abril de 2021




NOTA PÚBLICA DO MOVIMENTO INTERFÓRUNS DE EDUCAÇÃO INFANTIL

DO BRASIL (MIEIB) SOBRE O PROJETO DE LEI N.o 3179/12 -

REGULAMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO DOMICILIAR

            Diante das atuais manifestações envolvendo atores do Legislativo, do Executivo Federal e de entidades da sociedade civil sobre o Projeto de Lei n. o 3179/2012 de autoria do Deputado Lincoln Portela (PR-MG) cuja relatoria está sob responsabilidade da Deputada Luísa Canziani (PTB-PR), o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB) vem a público manifestar-se novamente e reiterar o seu posicionamento contrário a toda e qualquer medida favorável à regulamentação da educação domiciliar (homeschooling).

            O PL n.o 3179/2012 que “[...] Acrescenta parágrafo ao art. 23 da Lei no 9.394, de 1996, de diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a possibilidade de oferta domiciliar da educação básica”, representa risco à plena efetivação do direito à educação de todas e todos no Brasil.

            Proposição semelhante foi apresentada na atual gestão do governo federal- MP 934/2020 - sendo objeto de amplo e aprofundado debate da sociedade brasileira. Naquele momento, o debate ocorreu envolvendo especialistas do campo educacional, da área do Direito, de representantes de movimentos e entidades em defesa da educação, entre outros sujeitos envolvidos com a garantia de efetivação do direito à educação como dever do estado, sendo rejeitada de forma unânime.

            Diante da retomada das discussões em torno do PL n.o 3179/2012, consideramos que tal processo deve ser objeto de amplo e aprofundado debate envolvendo movimentos sociais, entidades, especialistas e pesquisadoras/es da área da educação reconhecidos pela sua contribuição em defesa do direito à educação escolar, pública, gratuita, laica, inclusiva e de qualidade social a todas e todos desde que nascem.

            O MIEIB considera que tal regulamentação, caso ocorra, colocará em risco o direito à educação – desde a creche e ofertada em Instituições educacionais devidamente organizadas para esse atendimento – como um dos direitos fundamentais da pessoa humana e poderá ampliar, de forma significativa, a desigualdade social e educacional no nosso país, pois grande parcela da população brasileira ficará à margem das condições necessárias a que tem direito para o processo de aprendizagem e desenvolvimento de todo ser humano.

            Nesse sentido, apresentamos argumentos que justificam a defesa do MIEIB em favor da oferta educacional em Instituições educacionais específicas: 

  • A proposta de educação domiciliar contraria a decisão do Supremo Tribunal Federal que, no mês de setembro de 2018, considerou não existir legalidade no ensino domiciliar. Esta forma de ensino mostra-se em desacordo com o art. 208 da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), a partir da EC no 59/2009:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; [...] § 1o O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo (BRASIL, 1988; 2009).

  • Ainda, segundo a CF/1988 no seu Art. 211, § 4.o, “[...] na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório” (BRASIL, 1988).
  • A proposta também fere os art. 53, 54 e 55 da Lei n.o 8069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que versam sobre o direito à educação de toda criança e adolescente, o dever do Estado na garantia da educação escolar pública e o dever das famílias em matricular seus filhos na rede regular de ensino, tal como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB 9.394/1996, em seu art. 4o, que determina:
Art. 4o. O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:

I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, organizada da seguinte forma: (Redação dada pela Lei no 12.796, de 2013) 

a) pré-escola; (Incluído pela Lei no 12.796, de 2013)

b) ensino fundamental; (Incluído pela Lei no 12.796, de 2013)

c) ensino médio; (Incluído pela Lei no 12.796, de 2013)

II - educação infantil gratuita às crianças de até 5 (cinco) anos de idade; (Redação dada pela Lei no 12.796, de 2013)

III - atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino; (Redação dada pela Lei no 12.796, de 2013)

IV - acesso público e gratuito aos ensinos fundamental e médio para todos os que não os concluíram na idade própria; (Redação dada pela Lei no 12.796, de 2013);

V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;

VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;

VII - oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola;

VIII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde; (Redação dada pela Lei no 12.796, de 2013)

IX - padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.

X – vaga na escola pública de educação infantil ou de ensino fundamental mais próxima de sua residência a toda criança a partir do dia em que completar 4 (quatro) anos de idade. (Incluído pela Lei no 11.700, de 2008) (BRASIL, 1996, grifos nossos).

  • Para além do dever do Estado na garantia da oferta de educação básica, desde o nascimento, a educação domiciliar coloca em risco a educação pública como direito, na medida em que tende a valorizar a liberdade da iniciativa privada na elaboração de materiais didáticos, estratégia alinhada aos princípios do mercado, o que poderá descaracterizar e fragilizar a profissão docente, em desacordo com o Art. 61 da LDB 9.394/1996, que versa sobre a habilitação dos profissionais para atuação na educação escolar básica.
  • De igual modo, a admissibilidade de educação domiciliar sobrecarregará as famílias que, por não terem formação específica para mediarem os processos de ensino e aprendizagem, podem não contribuir para o desenvolvimento pleno dos bebês e crianças pequenas, deixando de promover interações, brincadeiras e experiências educativas que abarquem conhecimentos de diferentes ordens (culturais, históricos, científicos, populares, tradicionais, artísticos, científicos, envolvendo aspectos do mundo natural e social, dentre outros).
  • O ensino domiciliar também contraria as DCNEI/2009 (CNE/CP, 2009), pois desobriga o Estado em garantir a educação infantil para as crianças de zero a seis anos de idade, em espaços institucionais não domésticos, possibilitando que sua oferta seja efetivada pelas famílias, que passarão a ser consumidoras de materiais didáticos privados, ameaçando os fundamentos do direito à educação. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil de 2009 (DCNEI/2009), definem a educação infantil, em seu art. 5o, como: 
        Primeira etapa da educação básica, oferecida em creches e pré-escolas, às quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social. § 1o É dever do Estado garantir a oferta de Educação Infantil pública, gratuita e de qualidade, sem requisito de seleção (CNE/CP, 2009).

  • As DCNEI estabelecem um caráter interacional aos currículos de creches e pré-escolas, dos quais as/os profissionais aproximam-se e compreendem as experiências sociais vivenciadas pelas crianças com seus pares e com diferentes adultos, de modo a propor novas experiências educativas que visam ao desenvolvimento pleno de meninos e meninas.
  • Essas mesmas diretrizes também estabelecem a indissociabilidade entre as práticas de cuidado e educação, compreendendo-as como dimensões articuladas em toda e qualquer prática educativa.
  • As DCNEI/2009 expressam o acúmulo atual e avançado de conhecimentos pedagógicos das/os especialistas e instituições que atuam na educação infantil no país, construídas com ampla participação social e estão em coerência com o pensamento pedagógico dos países mais desenvolvidos educacionalmente.
  • A proposta de educação domiciliar desconsidera a realidade brasileira nos seus diferentes contextos, os diferentes arranjos familiares, as profundas desigualdades sociais que inviabilizam que essa modalidade de educação se efetive de forma plena para milhões de bebês e crianças pequenas no Brasil que não terão condições estruturais para que isso se efetive, uma vez que o acesso à educação escolar é entendido como a única forma de garantia do direito à educação legalmente declarado. Portanto, considera-se inválida a comparação do Brasil com a realidade de outros países que regulamentaram tal prática, uma vez que estes detêm indicadores sociais e educacionais superiores.
  • Assim, e considerando as intensas desigualdades e a pobreza estrutural da realidade brasileira, ressalta-se que o direito à educação escolar está relacionado a outros direitos, tais como, o direito à alimentação e à proteção integral de sujeitos em situação de risco e vulnerabilidade. A aprovação de possibilidade de educação domiciliar representa alto risco em colocar esses sujeitos como suscetíveis às mais variadas formas de violação de direitos. 
         Portanto, ainda que existam argumentos favoráveis a essa prática e que se pautam em experiências de países como os EUA e Canadá, no nosso país tal modelo não se aplica dadas as especificidades da realidade socioeconômica, educacional e, sobretudo, os marcos legais brasileiros que garantem o direito à educação escolar a todas e todos. Do mesmo modo, tal proposta nega a relevância do papel da escola como um espaço fundamental nos processos de socialização das crianças e adolescentes.

         Diante destes argumentos colocam-se algumas questões:

- Estaria o sistema educacional brasileiro e seus órgãos competentes em normatizar e fiscalizar a oferta dessa modalidade de ensino – caso aprovada – preparados para estabelecer e efetivar mecanismos de acompanhamento e avaliação da aprendizagem? 

- Diante da possibilidade de educar seus filhos em casa, as famílias que não dispõem de recursos para garantir acesso a materiais didáticos e nem contratar profissionais, contariam com o apoio do Estado em disponibilizar recursos públicos para essa modalidade de ensino?

- Tal opção de algumas famílias não estaria fortemente amparada por suas opções religiosas – e até com posicionamentos fundamentalistas – colocando em risco a convivência das crianças e adolescentes e promovendo um “[...] isolamento social, afastando-os do contato com comportamentos e visões que não os da sua religião, prejudicando a sua formação enquanto indivíduos e cidadãos pertencentes a uma coletividade”? (BARBOSA, 2013, p. 305).

- Não seria essa proposta um indicador de que o sistema educacional brasileiro, no que tange às condições de qualidade da oferta educacional, deva ser objeto de atenção e debate a ser fortalecido nos espaços de formulação e implementação de políticas educacionais, com viabilização de recursos públicos e controle social para a superação dos grandes desafios que ainda se colocam para que se materialize o princípio constitucional de conferir padrão de qualidade às escolas brasileiras?

        O MIEIB se posiciona vigilante na defesa intransigente da educação infantil pública, gratuita, laica, inclusiva e de qualidade social para todas as crianças de zero até seis anos de idade, como dever do Estado e com oferta em instituições educacionais.

        Conclamamos os Fóruns de Educação Infantil Estaduais, Regionais e Municipais, demais movimentos e entidades que atuam na defesa de direitos e representantes políticos e do Sistema de Justiça, para que acompanhem e se posicionem de forma contrária, com ampla divulgação desse posicionamento, informando famílias e a comunidade em geral, esclarecendo a problemática que envolve essa proposta e impedindo que seja aprovada, sobretudo num contexto de intensa crise sanitária devido à pandemia da COVID-19, sob a qual muitos direitos estão sob risco e com a inviabilidade de ampliar e qualificar o debate.

COMITÊ DIRETIVO DO MIEIB

O texto original pode ser conferido pelo Link.

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